Criptomoedas, CBDCs e o futuro das FiDes
Apesar de sua trajetória nem sempre linear, as FiDes vieram para revolucionar o sistema financeiro
O termo “fides” é oriundo do latim e significa “fé”, “confiança”, do qual também derivam termos como “fidúcia”, “fiduciário” e “fiança”. Ao refletirmos sobre o presente artigo, entendemos que a sigla “FiDes” se encaixaria perfeitamente para traduzir do inglês a sigla “DeFi” (Decentralized Finance, ou, em português, Finanças Descentralizadas), uma vez que a história da descentralização financeira traz como seu maior desafio aquele relativo à sua confiabilidade, pilar esse tanto do bom funcionamento do sistema financeiro como da utilização de moeda fiduciária (não por acaso o termo “fiduciária”, derivado de “fides”, se apresenta aqui) pela sociedade.
De forma mais recente, a confiabilidade no sistema financeiro foi assegurada pela criação dos Bancos Centrais, não apenas como emprestadores de última instância (assegurando assim a solvência de instituições financeiras e mitigando o risco de crises sistêmicas), mas também como garantidores do poder de compra da moeda por meio do manejo de instrumentos de política monetária (no caso do Brasil, podemos citar como exemplos de tais instrumentos as operações de open market com títulos públicos, a definição da taxa de juros pelo Comitê de Política Monetária - Copom, e as operações de redesconto).
Há alguns anos, a primeira grande contestação à confiabilidade dos sistemas financeiros tradicionais se deu com a crise dos subprimes de 2007-2008. Tal reação se deu com a publicação de um paper escrito por Satoshi Nakamoto intitulado “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, o qual lançaria as bases para a criação dos bitcoins e do blockchain, com a finalidade de criar um sistema para pagamentos peer-to-peer completamente descentralizado, ou seja, sem a necessidade de um Banco Central ou de terceiros fiduciários intermediários para validação das transações de pagamento. Com isso, à época as bases das finanças descentralizadas pareciam estar inerentemente calcadas em um sistema totalmente diverso dos sistemas financeiros tradicionais.
Contudo, na prática o desenvolvimento dos bitcoins desde então (e, mais amplamente, das criptomoedas em geral) se mostrou bastante diferente daquilo que originalmente houvera sido pensado por Satoshi Nakamoto: multiplicaram-se os casos envolvendo fraudes, uso de criptomoedas para lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo e esquemas Ponzi envolvendo esses ativos. Além disso, as criptomoedas mostraram-se com capacidade dubitável para cumprir com as funções econômicas próprias de uma moeda (quais sejam, unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento), seja pelas variações às vezes extremamente bruscas no seu valor (comprometendo assim sua função como reserva de valor), seja pelas dificuldades no seu uso como meio de pagamento (visto que a validação das transações - as quais, no caso dos bitcoins, se dá por meio da solução de complexos problemas algorítmicos pelos chamados “mineradores” - implica a necessidade de um aparato tecnológico-computacional cuja manutenção e operacionalização acarreta impactos relevantes ao meio ambiente, o que compromete sua escalabilidade e sustentabilidade).
De modo a endereçar a questão da variabilidade do valor das criptomoedas, foram posteriormente criadas as stablecoins, as quais teriam todas as características das criptomoedas tradicionais (descentralização, prescindibilidade de um terceiro fiduciário intermediário para validação das transações, desnecessidade de um Banco Central), mas com a vantagem de terem seu valor estabilizado e respaldado no valor de fiat money (mais comumente, o dólar norte-americano ou o euro). Nesse sentido, aparentemente a função do Banco Central como garantidor do poder de compra ou da reserva de valor da moeda seria dispensável nas stablecoins, estando garantida por meio de um lastro que poderia ser constituído de maneiras diversas, tais como por meio de um pool de ativos refletindo o valor da moeda fiduciária de referência. Não obstante, o colapso recente das stablecoins TerraUSD e Luna (no chamado episódio Terra Luna crash) expôs a fragilidade de tais aparentes vantagens comparativas das stablecoins com relação às criptomoedas de primeira geração.
Somando-se a todos esses casos de escândalos e desvalorizações das criptomoedas privadas, recentemente tivemos o crash global das criptomoedas. Com isso, poderíamos concluir pelo fracasso do projeto das FiDes?
A resposta a essa pergunta, a nosso ver, é negativa e, à maneira aristotélica, a solução está em um meio-termo. Se, de fato, as criptomoedas apresentaram problemas incontornáveis ou, no mínimo, de difícil solução para a constituição de um sistema financeiro descentralizado que assegure a confiabilidade a seus usuários, os recentes projetos de CBDCs (Central Bank Digital Currencies) prometem moedas digitais que replicam em tudo a descentralização no que diz respeito à prescindibilidade de um terceiro fiduciário intermediário para validação das transações, ao mesmo tempo em que mantêm tal ambiente financeiro descentralizado inserido no âmbito de uma política monetária realizada pelos Bancos Centrais, com base em moeda fiduciária. Ou seja, salvam-se aqui tanto os anéis como os dedos.
Ao contrário de qualquer possível pessimismo em relação às finanças descentralizadas decorrente dos altos e baixos envolvendo as criptomoedas, podemos ver todos esses movimentos, desde a criação dos bitcoins, passando pela sua ascensão, altas e crises, até a criação das CBDCs, como passos necessários para o devido aprendizado que conduzirá o sistema financeiro a um novo patamar e à possibilidade de fornecimento de produtos e serviços mais baratos e mais eficientes à sociedade, mantendo a confiabilidade, a manutenção das funções sociais da moeda e possibilitando uma maior inclusão financeira. Portanto, apesar de suas idas e vindas e de sua trajetória nem sempre linear, as FiDes vieram definitivamente para revolucionar o sistema financeiro.
Reinaldo Le Grazie foi diretor de Política Monetária do Banco Central e é atualmente sócio da Panamby Capital
Pedro Eroles é advogado e especialista em regulação financeira e de pagamentos
Matéria escrita para o jornal Valor Econômico.
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