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MÍDIA NEWS

O cisne verde e o BC

Mudanças climáticas são mais complexas do que cisnes negros.

Por Reinaldo Le Grazie e Pedro Eroles para o Valor Econômico.


Em decorrência de duas consultas públicas realizadas pelo Banco Central do Brasil no primeiro semestre do ano passado, ambas no âmbito da dimensão de sustentabilidade da Agenda BC#, recentemente o regulador financeiro emitiu normativos estabelecendo diretrizes ESG (sigla para Environmental, Social and Governance) aplicáveis a instituições financeiras e outras instituições autorizadas, a fim de estabelecer parâmetros de gerenciamento de riscos ESG, bem como alinhar a estrutura regulatória brasileira às diretrizes internacionais sobre o tema, tais como as debatidas no âmbito da Network for Greening the Financial System (NGFS), do Financial Stability Board (FSB) e do Basel Committee on Banking Supervision. Dentre tais diretrizes de gerenciamento de riscos ESG, temos como uma grande novidade o endereçamento específico dos riscos financeiros decorrentes das mudanças climáticas.


No início de 2020, o Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements - BIS) emitiu o relatório “The green swan - Central banking and financial stability in the age of climate change” (O cisne verde - atuação dos Bancos Centrais e estabilidade financeira na era da mudança climática), no qual os riscos à estabilidade do sistema financeiro decorrentes das mudanças climáticas foram referenciados no conceito de eventos “cisne verde”, relacionado ao conceito de “cisne negro”, o qual por sua vez é definido como o evento 1- que é inesperado e raro, ficando assim fora do escopo de expectativas normais; 2 - cujos impactos são vastos e extremos; e 3 - que somente pode ser explicado satisfatoriamente post facto (exemplos de cisnes negros são ataques terroristas ou o surgimento de tecnologias disruptivas).


Nesse sentido, os cisnes verdes seriam os “cisnes negros climáticos”, com diversas características semelhantes aos cisnes negros, sendo, contudo, diferentes desses em ao menos três aspectos, quais sejam, 1 - apesar de os impactos das mudanças climáticas serem altamente incertos, há um alto grau de certeza de que alguma combinação de riscos climáticos físicos (definidos como aqueles relativos à possibilidade de ocorrência de perdas ocasionadas, direta ou indiretamente, por eventos associados a condições ambientais extremas, que possam ser relacionadas a mudanças em padrões climáticos) e riscos climáticos de transição (definidos como aqueles relativos à possibilidade de ocorrência de perdas ocasionadas, direta ou indiretamente, por eventos associados ao processo de transição para uma economia de baixo carbono, em que a emissão de gases do efeito estufa é reduzida ou compensada) se materializarão no futuro (ou seja, há certeza sobre a necessidade de ações substanciais para o endereçamento desses riscos, apesar da incerteza sobre quando e como exatamente se darão os impactos financeiros decorrentes das mudanças climáticas); 2 - catástrofes decorrentes das mudanças climáticas são potencialmente mais sérias do que crises financeiras sistêmicas, uma vez que aquelas colocam diretamente e em última instância uma ameaça à existência da própria humanidade; e 3 - a complexidade com relação às mudanças climáticas são de uma ordem superior à complexidade dos cisnes negros, uma vez que a complexa cadeia de reações e efeitos em cascata associados com os riscos climáticos físicos e com os riscos climáticos de transição podem ocasionar dinâmicas ambientais, geopolíticas, sociais e econômicas imprevisíveis, as quais as matrizes de gerenciamento de riscos tradicionais das instituições financeiras não estão preparadas para mitigar ou contornar, uma vez que as atuais ferramentas de análise estão tipicamente focadas em impactos de curto prazo, ao passo que os impactos financeiros das mudanças climáticas poderão ocorrer a médio e longo prazo.


As consequências das mudanças climáticas potencialmente afetarão diversos aspectos econômicos e financeiros dos mercados globais. Dentre tais consequências, vale destacar a geração de incerteza e instabilidade no cenário de investimentos, mudanças nos padrões e comportamentos de consumo das pessoas, alterações nas formas e mecanismos de comércio nacional e internacional (devido a, por exemplo, mudanças nos sistemas de transporte), diminuição da produtividade laboral (em decorrência, por exemplo, do calor extremo), decréscimo da produtividade agrícola e redirecionamento, pelas empresas, de recursos de capital produtivo e de inovação para investimentos voltados à adaptação às novas exigências decorrentes das alterações climáticas.


Nesse contexto, apesar das implicações das mudanças climáticas terem sido amplamente debatidas em outras esferas, os seus impactos no sistema financeiro ainda têm sido parcialmente ignorados. Justamente em linha com a necessidade de endereçamento dessas preocupações quanto aos riscos financeiros e monetários decorrentes das mudanças climáticas, as novas diretrizes do Banco Central preveem especificamente a necessidade de um gerenciamento específico e focado dos riscos climáticos, bem como instituem a necessidade de implementação pelas instituições financeiras de uma política para esses riscos, a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC), a fim de estabelecer para tais instituições financeiras, bem como para suas contrapartes, fornecedores e prestadores de serviços terceirizados, parâmetros de gerenciamento dos riscos relacionados à eventual ocorrência de cisnes verdes.

As mudanças climáticas colocam um desafio sem precedentes para o sistema financeiro, sobretudo com relação ao difícil equilíbrio entre a regulação prudencial e a eficiência na atuação das instituições financeiras para a transição das empresas em direção a fontes de energia limpa.


Diferentemente de outros riscos, como os riscos operacionais, de crédito, de mercado e de liquidez, os impactos das mudanças climáticas e a materialização da combinação de riscos climáticos físicos e de transição poderão trazer impactos substanciais e mesmo desestabilização ao Sistema Financeiro, e o debate sobre os impactos financeiros e monetários de tais riscos ainda é, relativamente a outros riscos, incipiente. Desse modo, em linha com as diretrizes de gerenciamento de riscos climáticos recentemente emitidas pelo Banco Central, as funções de supervisão e enforcement de tais diretrizes junto às instituições financeiras deverá ser prioritária na pauta do regulador financeiro brasileiro nos próximos anos, o qual deverá atuar em coordenação com outros órgãos do governo para que haja uma visão integrada e holística da questão.

Reinaldo Le Grazie foi diretor de Política Monetária do Banco Central e é atualmente é CEO e sócio da Panamby Capital.

Pedro Eroles é sócio do Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados.

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